Roteirista de Deus Ex rejeita Elon Musk como fã do jogo

Roteirista de Deus Ex diz não gostar que Elon Musk ama o jogo

O clássico Deus Ex, lançado em 2000 pela Ion Storm e distribuído pela Eidos, continua sendo considerado um dos marcos do gênero RPG cyberpunk.

A mistura de narrativa política, exploração filosófica e liberdade de escolhas ajudou a moldar não apenas uma geração de jogadores, mas também o design de títulos posteriores.

No entanto, nas últimas 24 horas, o jogo voltou ao centro do debate por um motivo inusitado: Sheldon Pacotti, roteirista principal do projeto, afirmou não gostar do fato de Elon Musk se declarar fã da obra.

A declaração ocorreu em entrevista publicada pela Kotaku, após mais uma menção de Musk à Deus Ex como um de seus jogos favoritos.

O bilionário dono da Tesla, SpaceX, Neuralink e da rede social X (antigo Twitter) já havia comentado em diversas ocasiões sua admiração pela franquia. Musk destacou a profundidade do universo e os dilemas éticos relacionados à tecnologia.

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Por que Musk gosta do título?

Para Musk, o título que é sucesso no mundo dos games é uma fonte de inspiração que dialoga com temas que ele próprio explora em sua trajetória, como inteligência artificial, transumanismo e ambições de engenharia de ponta.

O problema, para Pacotti, é justamente esse. Segundo ele, ver Deus Ex citado como referência pessoal por alguém que encarna muito do poder tecnológico e corporativo criticado pelo jogo soa como uma distorção da mensagem original.

O roteirista afirmou que a obra foi escrita como um alerta contra a concentração de poder, a manipulação social e o uso descontrolado da tecnologia, não como um manual de exaltação.

Em suas palavras, a ideia sempre foi dar ao jogador a sensação de estar preso em uma rede de interesses maiores do que ele, questionando quem realmente detém as rédeas da sociedade.

Essa posição revela um desconforto comum entre criadores de obras culturais duradouras: ver sua mensagem apropriada por figuras que representam justamente aquilo que o trabalho buscava criticar.

Para Pacotti, não é animador saber que alguém com o alcance de Musk, conhecido tanto por sua genialidade técnica quanto por suas declarações polêmicas, se identifica com Deus Ex sem, aparentemente, captar a crítica embutida na narrativa.

Deus Ex: quando a ficção vira profecia

Parte do incômodo do roteirista também está no caráter quase profético de Deus Ex. O jogo abordava temas que, em 2000, pareciam exagerados ou conspiratórios: pandemias globais, vigilância em massa, terrorismo digital, privatização de segurança e manipulação de dados por megacorporações. Hoje, muitos desses pontos soam assustadoramente atuais.

O enredo, que acompanha o agente JC Denton em um futuro distópico de 2052, coloca o jogador diante de facções políticas, empresas privadas e organizações secretas que disputam o controle do mundo.

A atmosfera de paranoia e as escolhas morais complexas moldaram a reputação do jogo como uma das obras mais inteligentes já feitas.

Nesse contexto, o paralelo com a figura de Elon Musk é inevitável. Ele é, ao mesmo tempo, inovador e polêmico, exaltado como visionário tecnológico, mas criticado por práticas corporativas agressivas e declarações que alimentam debates políticos globais.

A ironia de ter um “megacorp CEO” como fã de Deus Ex não passou despercebida por Pacotti, que teme a diluição da crítica original em meio ao culto da personalidade de Musk.

A tensão entre criador e fã

Casos em que criadores expressam desconforto com fãs célebres de suas obras não são inéditos. Autores de literatura, cineastas e até músicos já declararam insatisfação ao perceber suas mensagens distorcidas ou usadas por figuras controversas.

No caso de Pacotti, a reação tem um componente adicional: a interatividade dos jogos. Diferente de um livro ou filme, Deus Ex coloca o jogador no controle das decisões, permitindo múltiplos caminhos e finais.

Essa abertura narrativa amplia a gama de interpretações possíveis, tornando natural que diferentes pessoas encontrem significados distintos na obra. Para Musk, pode ter sido um jogo sobre avanço humano e ambição tecnológica; para Pacotti, é e sempre foi uma crítica às estruturas que moldam esse avanço.

A tensão entre criador e público se agrava quando o fã em questão é uma das figuras mais influentes do mundo, capaz de pautar debates políticos, econômicos e culturais com um simples tweet.

Ao se declarar fã de Deus Ex, Musk inevitavelmente adiciona uma camada de interpretação que reverbera muito além da comunidade gamer.

Musk, games e identidade cultural

Não é novidade que Elon Musk gosta de jogos. Ao longo dos anos, ele já citou títulos como Overwatch, Bioshock e The Witcher 3 como favoritos, além de mencionar sua paixão antiga por Civilization.

Em várias entrevistas, Musk relacionou sua visão de mundo com experiências imersivas nesses universos, usando jogos como metáfora para explicar desde estratégias empresariais até reflexões filosóficas.

Esse vínculo cultural reforça a importância dos games como linguagem universal. Quando uma das figuras mais ricas e poderosas do planeta declara sua admiração por um jogo, o impacto não é apenas na comunidade gamer. Mas no reconhecimento do meio como parte integrante da cultura global.

Ainda assim, o desconforto de Pacotti mostra que essa associação pode gerar consequências inesperadas. Especialmente quando a obra em questão foi concebida como crítica às estruturas de poder que Musk simboliza.

O legado de um clássico

Independentemente da polêmica, o episódio reforça a longevidade cultural de Deus Ex. Poucos jogos lançados há mais de duas décadas ainda conseguem gerar manchetes e discussões públicas em torno de seus significados.

O desconforto de Pacotti não diminui a relevância da obra; pelo contrário, mostra que ela continua viva e em disputa, algo que poucos produtos culturais alcançam.

Para a indústria, fica a lição de que jogos são mais do que entretenimento: são ferramentas de debate cultural, capazes de ser apropriadas, reinterpretadas e ressignificadas.

Deus Ex nasceu como uma crítica às sombras do poder tecnológico, mas sua força foi tamanha que atravessou gerações, alcançando inclusive figuras que representam esse mesmo poder.

Afinal, o que isso tudo quer dizer?

O embate entre Sheldon Pacotti e Elon Musk é, no fundo, um reflexo do papel que os games assumiram no século XXI. Eles não são apenas produtos de consumo, mas obras abertas à interpretação, espelhos de sociedade e instrumentos de disputa cultural.

A ironia de um megacorp bilionário se identificar com um jogo que critica megacorps não é uma falha do game é a prova de sua potência.

Para os jogadores, a polêmica é um lembrete de que Deus Ex continua relevante. Para a indústria, é um exemplo de como obras profundas podem transcender o tempo e continuar alimentando debates.

E para Elon Musk, talvez seja apenas mais uma oportunidade de mostrar que, no fim, até os mais poderosos se veem refletidos em mundos que foram criados para questionar justamente o poder que exercem.

Leonardo Cavalcanti é jornalista e atua na cobertura de games, apostas online e tecnologias emergentes aplicadas ao entretenimento. Também fala sobre blockchain, criptoativos e inovação financeira. Com formação acadêmica em Jornalismo pelo Mackenzie e trajetória no jornalismo digital, conecta o público gamer a tendências globais.